terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

"Façamos, vamos amar..."

"Beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o teu amor do que o vinho." (Cantares 1 : 2)

De poesia também se vive, já diria o poeta... E de beijos e abraços? Igualmente. Ou melhor, muito mais ainda! A verdade é que se o caminho para a vida plena é feita de lutas pela paz e justiça, é com carinho e afeto que se enfeita a estrada, e faz que o horizonte – que às vezes nos parece duro e distante – se torne um jardim.
Temos diversos textos nas escrituras que falam da beleza do amor como sentimento e também como toque, como carícia, olhos, nos olhos, contato de pele. Dentre todos, o mais belo e o mais claro em termos de narrativa é certamente o “Cântico dos Cânticos”.
Sem rodeios ou falso pudores, os personagens do texto nos lembram aquilo que nunca deveríamos esquecer: dar e receber carinho faz bem; é preciso conhecer e apreciar o corpo do(a) amado(a); um beijo, uma canção ao pé do ouvido - pode ser declamada se não souber cantarolar; um abraço; uma flor... tudo isso conta muito, e não é algo que pode ser negligenciado na vida a dois. Enfim, nos traz a mente o quanto é importante não esconder o amor dentro de si, sem nunca demonstrá-lo. Como a luz que não se esconde embaixo da mesa, o amor - que inclui sim a dimensão da sexualidade -  precisa estar em lugar de destaque para que possa iluminar a seu modo, a vida de um casal.
Além disso, para além do texto, temos que lembrar que são os gestos de afeto que ajudam a manter a intimidade de um casal. Num mundo tão áspero e violento, fazer um “dengo” suaviza o dia, e dá fôlego pra se viver.
Mesmo que nossa formação cultural e religiosa não nos ajude muito nesse sentido, como em tantas outras coisas na vida, é preciso ultrapassar nossos limites quando a causa é nobre... Como diria a canção, interpretada na inconfundível voz de Elza Soares num dueto com Chico Buarque: “façamos, vamos amar”.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A dimensão do prazer

     "As suas pernas como colunas de mármore colocadas sobre bases de ouro puro; 
o seu aspecto como o Líbano, excelente como os cedros. A sua boca é muitíssimo suave, sim, ele é
totalmente desejável. Como cerva amorosa, e gazela graciosa, os seus seios te saciem todo o tempo;
e pelo seu amor sejas atraído perpetuamente.  (Provérbios 5 : 19 e Cântico dos Cânticos 5:15)

     Tabu, algo proibido, sobre o qual o quanto menos se falar, melhor. É desse modo que a questão da sexualidade é em geral tratada no ambiente cristão. Mas onde é que começa o problema? Quando foi e por que a questão da sexualidade passou a ser reprimida na história do pensamento cristão? Como uma brevíssima (e incompleta) leitura desse tema, me arrisco a dizer que nas narrativas do Antigo Testamento, como na discussão posterior, há três dimensões sobre a discussão do corpo e da sexualidade, com seus limites e contradições.
     A primeira discute a questão de como a sexualidade poderia ser empecilho a união cultual com Deus, a partir da noção mítica do puro e do impuro; era assim que o homem era considerado impuro, e assim impedido por tempos determinados de participar do culto, em caso de ejaculação e a mulher em caso de menstruação, hemorragia e nascimento do filho (Lev.. 15:16-21). O valor dessa leitura é difícil de apontar. Há quem resgate o tema apontando que se tratava de uma forma rudimentar de “medicina preventiva”, que a partir do senso-comum procurava impor certas medidas consideradas sanitárias. Os limites, porém são claros: lidos em uma cega textualidade esses textos apontam para a visão onde o corpo em geral, e a sexualidade em específico, é “suja”, ou melhor, impura. Tal crença porém é incompatível tanto com a idéia de que a criação é “boa” quanto com a nossa crença de que Deus se Encarnou – pois se o corpo é intrinsecamente mal, seria preciso dizer que Cristo não tinha um verdadeiro corpo, mas apenas uma “aparência” de corpo.
     A segunda dimensão tem haver com a sexualidade vista a partir de uma ótica moral e social; é nessa linha que devem ser lidas as prescrições específicas contra o adultério (Dt. 22:22), o incesto (Lev. 18:6-18), a prostituição (Dt. 23:28), entre outros atos considerados como contrários a Lei Divina, e ao mesmo tempo como desorganizadores da vida humana em família/sociedade; a busca desses textos então é de promover a “vida com qualidade” e prevenir os abusos que uma sexualidade desregrada poderia (e pode) trazer. Isto é, esses textos nos servem ainda hoje de importante lembrete de que o prazer sexual não pode ser fruído as expensas do outro; e que o respeito tanto aos indivíduos como a sociedade devem ser considerados sempre, em todo e qualquer ato humano. O perigo dessas leituras é a possibilidade do “engessamento” de determinados preceitos morais e sociais que não equivalem mais ao que temos como os mais altos valores humanos hoje – um exemplo claro é o lugar da mulher em nossa cultura; ainda que lutando contra muitos preconceitos, as mulheres têm hoje assegurados direitos que antes eram simplesmente ignorados.
     A outra dimensão, muitas vezes “esquecida” e reprimida, é a que vê no corpo e na sexualidade uma possibilidade para o prazer e o deleite humano. É assim que pensa o escritor do Eclesiastes, quando reconhece que em nossa fugaz existência, o prazer numa relação a dois é uma forma de se “recrear” diante de uma vida marcada pela aridez (Ec. 9:9).   Mas muito além disso, o escritor – ou escritora? – do Cântico dos Cânticos nos fala do amor entre duas pessoas – e que inclui naturalmente a esfera do corpo e da sexualidade – como sendo uma demonstração do belo no ser humano. Amado e amada não se envergonham de falar da beleza do corpo um do outro, e de declarar o amor e desejo que sentem um pelo outro; sem o subterfúgio de dizer que se trata de um amor entre “almas” – ainda que esse amor tenha muito de profundo, de interioridade, ele se derrama também no exterior e no corpo, que eles nomeiam e admiram com voracidade e prazer. Infelizmente a igreja e os teólogos sentem vergonha do corpo e da sexualidade humana. Adoecem a si mesmos, e deixam de prestar uma grande contribuição a própria dinâmica de nosso tempo. Ora, num tempo onde a sexualidade é vista quase sempre de forma superficial, tal leitura permite recolocar a questão de modo muito mais profundo e integrado, por que, de outro modo, para aqueles que ainda sentem o peso do jugo de uma educação sexual repressiva e suas conseqüentes deformações, perceber que o texto bíblico vê no corpo humano e sua indissociável sexualidade algo “bom”, pode significar uma libertação tão necessária quanto urgente.