sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Igreja e contemporaneidade - desafios para o ser igreja e a educação cristã


Introdução:

Por onde podemos começar para que ao final, tenhamos pelo menos uma idéia do que se trata o fenômeno da existência da igreja no mundo de hoje? Diversos autores já se propuseram a este desafio, e, como alguém já disse, esse trabalho será o esforço para enxergar a realidade, apoiando-se “por cima dos ombros” daqueles que já empreenderam tal tarefa.

Para deixar ainda mais clara minha abordagem acerca do problema, quero dizer de minha convicção de que, a realidade da igreja, é uma comunidade de pessoas, que não obstante sua nova natureza continuam partilhando do fato de serem humanos, fragilmente humanos; por isso, suas construções coletivas particulares - como é o caso da igreja, guardarão, no mínimo, correlação com o desenvolvimento da sociedade como um todo. A situação da “igreja contemporânea” deve ser vista, portanto sob a dupla referência às questões bíblicas, históricas, doutrinárias que lhes são peculiares, como também em relação à história, ciência e cultura humana em geral; noutras palavras, para analisar a “igreja contemporânea”, devemos olhar também a própria situação contemporânea.

A verdade é que teríamos múltiplos caminhos para seguir. Por razões de tempo, iremos nos deter aqui em dois olhares diferentes. O primeiro será de “teórica”; quer dizer, iremos fazer uma breve síntese do impacto de três grandes “idéias” que deixaram suas marcas na cultura ocidental, e que, passado alguns séculos de sua origem, ainda são visíveis seus desdobramentos. O teólogo brasileiro Rubem Alves irá chamar essas idéias de “as três grandes humilhações” sofridas pela humanidade nos últimos séculos. Seriam elas: a “humilhação cosmológica”, a “humilhação antropológica”, e a “humilhação psicológica”. Vejamos um pouco mais detidamente cada uma delas:

a) Humilhação cosmológica - Até 1543, nenhuma pessoa de “bom-senso” colocaria em dúvida que a terra era o centro do Universo - a visão geocêntrica. Isto até a publicação “Das revoluções dos mundos celestes”, onde defendia que a terra girava em torno de seu próprio eixo, e em torno do Sol.  A teoria de Copérnico foi depois aperfeiçoada por Johannes Kepler no início do século XVII, mas na verdade, o estrago já estava feito: o homem que se julgava no centro do Universo deveria deixar suas ilusões, pois agora a terra deveria ser encarada como nada mais que um pouco de poeira diante do imenso universo. Foi abalado assim o mundo acima do homem.

b) Humilhação antropológica - A teoria de Charles Darwin, publicada em 1859, onde defendia basicamente duas premissas: que todas as espécies de plantas e animais que existem hoje descendem de formas mais simples - pressupondo a evolução biológica - e segundo, que essa evolução se deve a “seleção natural”.  Com isso, de uma só vez, Darwin atacou a crença na criação Divina, como também da proeminência absoluta do homem no mundo animal - este não escapava das regras da evolução. “Uma descoberta humilhante, quanto menos se falar dela melhor” disse um cientista contemporâneo a Darwin. “Ah, se estes geólogos nos deixassem em paz! Ao final de cada verso da Bíblia, ouço bater os seus martelos!”, disse um escritor inglês.

c) Humilhação psicológica - De uma constatação aparentemente simples: de que há uma tensão entre o homem e o seu meio, Freud saltou para a compreensão dos impulsos que regem a vida humana. Com isso, Freud desafiava a longa tradição que afirmava que a razão é quem comanda nossas ações. Ele dizia que nossos instintos básicos pedem satisfação. Como nem sempre estes podem ser satisfeitos por conta das diversas sanções sociais, estes nos aparecem de forma disfarçada - seja nos sonhos, ou nos rituais neuróticos. Longe de ter controle e consciência sobre seu mundo interior, o homem se encontra refém de seus desejos escondidos sob as grossas camadas da racionalização.

Essas “humilhações” se por um lado, levaram o ser humano a se afastar de visões inadequadas do mundo, abriram espaço, ou pelo menos, tem servido de legitimação para a exploração do homem pelo homem. Como diria Dostoievski, em seu romance, “Os irmãos Karamázovi”, se Deus não existe, tudo é permitido... Sendo assim, conclui Rubem Alves, o mundo contemporâneo, embora marcado pelo triunfo da ciência, é um lugar frio, onde o ser humano não se sente abrigado e tranqüilo, mas numa verdadeira luta contra tudo, e contra todos, afinal, como o próprio Freud afirmou “a intenção de que o homem fosse ‘feliz’ não está incluída no plano da ‘Criação’”;[1] e nesse mundo desencantado, não há nada nem ninguém que lhe garanta um sentido para orientar sua vida.  Ou como nas palavras do sociólogo alemão Max Weber, a nossa geração seria formada por: “Especialistas sem espírito, sensualistas sem coração. Esta nulidade imagina haver atingido um nível de civilização nunca dantes alcançado”.[2] 

Uma outra análise muito pertinente, e ao meu ver, mais fecunda para a aplicação a que nos propomos, é aquela levantada pelo sociólogo da religião Peter Berger, principalmente em duas de suas obras: “Rumor de Anjos” e “O Dossel Sagrado”. A partir da herança da sociologia do já citado Max Weber, ele propõe a seguinte trilogia para compreensão do mundo contemporâneo: pluralização, secularização e privatização. Um dos motivos por que vou utilizar-me dessa teoria, é por que o impacto dessas três forças na vida da igreja, já foi demonstrado pela obra do escritor e pastor presbiteriano Rubem M. Amorese, em seu livro “Icabode”, onde através da apreciação desses três temas, ele faz um exame interessante e apropriado sobre a situação da igreja evangélica no Brasil em nossos dias.

 É justamente por esse caminho já desbravado que irei viajar, e convido a todos que participem também desta caminhada, para que, ao mesmo tempo em que ouvimos as orientações daqueles que foram à nossa frente, possamos interagir com esses cenários, e assim dar também nossa perspectiva acerca do problema. Quem sabe, ao final, estaremos prontos para reconhecer os desafios e as possibilidades do tempo em que vivemos para a prática da educação cristã?

1. O exílio do divino: a questão da secularização

Segundo um certo consenso das ciências sociais, em nossos dias, assim como é óbvia a presença da religião em todas as culturas, é igualmente óbvio o fenômeno da secularização.  Diversos sociólogos e teólogos buscaram definir e compreender esse movimento rumo a dessacralização do mundo. Dietrich Bonhoeffer, teólogo alemão, refletindo sobre a obra do filósofo W. Dilthey chegou ao seguinte processo:

“O movimento em direção à autonomia humana (refiro-me à descoberta das leis segundo as quais o mundo vive e dá conta de si mesmo nas áreas da ciência, da sociedade e do Estado, da arte, da ética e da religião), que se iniciou por volta do séc. XXIII, chegou a uma certa completeza em nossos dias. O ser humano aprendeu a dar conta de si mesmo em todas as questões importantes sem apelar para a ‘hipótese de trabalho Deus’. Nas questões científicas, artísticas e éticas isto se tornou uma obviedade que dificilmente alguém ainda ousaria questionar; mas desde 100 anos (cerca de 1840) isso vale de modo crescente também para as questões religiosas”[3]

 A exposição do sociólogo americano Peter Berger não é muito diferente. Em sua obra “O Dossel Sagrado”, ele descreve assim o processo de secularização:

“O termo ‘secularização’ (...) foi usado originalmente, na esteira das Guerras de Religião, para indicar a perda do controle de territórios ou propriedades por parte das autoridades eclesiásticas. No Direito Canônico, o mesmo termo passou a significar o retorno de um religioso ao ‘mundo’. (...) O termo secularização refere-se a processos disponíveis empiricamente de grande importância na história ocidental moderna. (...) Por secularização entendemos o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos. (...) a secularização manifesta-se na retirada das igrejas cristãs de áreas que antes estavam sob seu controle ou influência: separação da Igreja e do Estado, expropriação das terras da Igreja, ou emancipação da educação do poder eclesiástico, por exemplo.”[4]

 No nível da cultura, este fenômeno tem as seguintes repercussões:

 “(...) Declínio dos conteúdos religiosos nas artes, na filosofia, na literatura e, sobretudo, na ascensão da ciência, como uma perspectiva autônoma e inteiramente secular, do mundo.” A isso soma-se o aspecto subjetivo: “(...) Assim como há uma secularização da sociedade e da cultura, também há uma secularização da consciência. Isso significa, simplificando, que o Ocidente moderno tem produzido um número crescente de indivíduos que encaram o mundo e suas próprias vidas sem o recurso às interpretações religiosas”[5].

Quanto ao alcance desse processo, Berger dá as seguintes pistas:

“Embora a secularização possa ser vista como um fenômeno global das sociedade modernas, sua distribuição entre elas não é uniforme. (...) Assim, descobriu-se que o impacto da secularização tende a ser mais forte nos homens do que nas mulheres, em pessoas de meia idade do que nas muito jovens ou idosas, nas cidades do que no campo, em classes diretamente vinculadas à moderna produção industrial, do que nas de ocupações mais tradicionais, em protestantes e judeus do que em católicos, e assim por diante.”[6]

Mas quais são os processos socioculturais que servem de veículos ou intermediários da secularização? Isto depende: “Visto de fora da civilização ocidental, a resposta é óbvia: é essa civilização, como um todo, em sua expansão pelo mundo. Vista de dentro da civilização ocidental, o ‘portador’ primário da secularização é o processo econômico moderno, ou seja, a dinâmica do capitalismo industrial.”

Longe de serem novas, estas afirmações remontam ao pensamento e a obra de Marx, que afirmou no “Manifesto do partido comunista” o papel revolucionário do modo de produção burguês:

“Onde que tenha conquistado o poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. (...) Afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta os sagrados frêmitos da exaltação religiosa (...) Numa palavra, no lugar da exploração mascarada por ilusões políticas e religiosas colocou a exploração aberta, despudorada, direta e árida. (...) Tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas.”[7]

É interessante ressaltar porém, que para Berger, um outro portador do processo de secularização é o protestantismo, e para isso aponta as seguintes razões:

“Comparado com a ‘plenitude’ do universo católico, o protestantismo parece ser uma mutilação radical, uma redução aos elementos ‘essenciais’, sacrificando-se uma ampla riqueza de conteúdos religiosos. (...) O aparato sacramental reduz-se ao um mínimo e, mesmo assim, despido de suas qualidade mais numinosas. Desaparece também o milagre da missa. O protestantismo deixou de rezar pelos mortos. Simplificado-se os fatos, pode-se dizer que o protestantismo despiu-se tanto quanto possível dos três mais antigos e poderosos elementos concomitantes do sagrado: o mistério, o milagre e a magia”[8].

 Dessa forma, “o crente protestante já não vive em um mundo continuadamente penetrado por seres e forças sagradas. A realidade está polarizada entre uma divindade radicalmente transcendente, e uma humanidade radicalmente decaída que, ipso facto, está desprovida de qualidades sagradas”. O mesmo também se aplica em relação à natureza.

Por isso mesmo, isto é, por ser um fenômeno tipicamente protestante, não faltaram entre nós os que encararam o processo de secularização não apenas irreversível, mas ainda como desejável: pois o “mundo tornado adulto”, segundo a definição de D. Bonhoeffer sobre o mundo contemporâneo, reflete melhor a realidade bíblica, que fala de um Deus que para se fazer compreensível e acessível à humanidade, resolveu encarnar-se, isto é, sair do eterno para o século, do transcendente para o imanente. Sendo assim, a igreja cristã é convocada a refletir sobre a realidade de Cristo, e agir de forma pro-ativa com relação ao mundo secularizado, ao atender ao desafio onde “o ser humano é conclamado a compartilhar o sofrimento de Deus por causa de um mundo sem Deus”[9], pois, “Não é o ato religioso que produz o cristão, mas a participação no sofrimento de Deus na vida mundana”[10]. A igreja é convidada portanto a deixar o comodismo da visão espiritualista, que enquanto aguarda o tempo vindouro deixa o mundo completamente entregue ao mal: “Esta é a mudança: não pensar primeiro nas próprias necessidades ou aflições, perguntas, pecados e medos, mas deixar-se arrastar para o caminho de Jesus, para dentro do evento messiânico do cumprimento de Is. 53 agora!”[11]. Bonhoeffer conclui que Jesus não conclama para uma nova religião, mas para a vida.  Neste novo modo de se encarar a vida religiosa, sobressai então os aspectos éticos da vida religiosa, em contraposição à outra mais fundada em aspectos místicos.

Mesmo estando disposto a concordar com algumas posições defendidas por Bonhoeffer, não é possível deixar de notar que a secularização levada às últimas conseqüências tem gerado um vazio espiritual, que certamente está longe de ser saudável à vida cristã - e por que não dizer, a vida humana. Pois se não devemos nos opor a secularização das ciências médicas, por exemplo, no tratamento das doenças neurológicas que antes eram tidas como “possessão demoníaca”; por outro, o “ateísmo metodológico” não apenas como a base do método científico, mas como critério final de “verdade” nos levou a um mundo, como diz R. Alves, “Glacial e mecânico, matematicamente preciso e tecnicamente manipulável, mas vazio de significações humanas e indiferente ao nosso amor”[12]. Pois é justamente daí que deriva o desafio e a oportunidade para a educação cristã: uma educação que responda aos anseios de significação de um mundo perdido, com a mensagem do ágape cristão.

“A fim de que todos sejam um. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo. 17:21). Nesse fragmento do texto conhecido como a “oração intercessória” de Jesus, está exposto um fundamento claro, embora muitas vezes esquecido para a prática cristã, incluído ai obviamente a prática da educação cristã: o mais importante da mensagem que temos para anunciar, não é um discurso, mas um modo de se viver à vida, modo este baseado na possibilidade do encontro, da troca, da solidariedade, enfim, baseado no amor, no ágape cristão.

Vamos pensar um pouco: onde tem estado a ênfase do ensino cristão? Será que não é na transmissão de conteúdos, isto é, na memorização de ensinos considerados “corretos”? Será que ao invés de apenas entulhar na mente das pessoas com conceitos, não é papel da educação cristã agir como facilitadora no processo de aproximação entre as pessoas?

Criar atividades e programas neste sentido, e acima de tudo, entender que este deve ser um tema presente no tratamento das mais diversas questões, sejam teológicas, doutrinárias, etc, fará com que a educação cristã possa responder adequadamente ao desafio proposto pela secularização. Afinal, se cremos no que Jesus falou, não será por causa de nossos discursos, por mais elaborados e aparentemente convincentes, que as pessoas crerão que Ele é o Filho de Deus, mas sim através de uma comunidade que realmente encarne os valores do Cristo, que falam de unidade em amor. Um grupo de pessoas que verdadeiramente se amem irá impressionar mesmo o ateu mais empedernido!

Vamos agora o que eu não quis dizer (e espero que não tenha dito...): eu não quis dizer que a transmissão de conteúdos não seja importante; simplesmente afirmei que apenas isto não basta.  Também não quis dizer que a educação deva se afogar num mar de sentimentalismo piegas; apenas chamei a atenção para o fato de que para mim, o ideal cristão não é o da “comunidade da reta doutrina”, mas sim da “comunidade dos amigos e amigas de Jesus, que são amigos uns dos outros”; por isso mesmo, o nosso método deve necessariamente derivar de nosso objetivo.

2. Pluralização: o mundo religioso visto como um “hipermercado”.

“O “renascimento” religioso a que assistimos atualmente é, quiçá, o pior golpe até agora desfechado contra o monoteísmo. Haverá maior sacrilégio do que referir-se a Deus como “o homem que está lá no sobrado”, do que ensinar a rezar para que Deus se torne um sócio nos negócios, do que “vender” a religião com os métodos e a propaganda usados para vender sabonetes?”[13]

Interessante como as palavras do psicanalista Erich Fromm, escritas no final da década de 60 do século passado parecem tão atuais! Parece mesmo que ele está criticando algum personagem bem conhecido da grande mídia! Como já sabemos que não é o caso, importa é perceber a sua crítica ao que se dizem monoteístas, mas se deixam levar pela maré de um mundo marcado pelo capitalismo, onde tudo e todos estão “à venda”, permitindo então que “deus” seja vendido como mais um dos produtos nos “hipermercados da fé”, que podem ser facilmente identificados, visto que a competição se tornou tão normal, que já não há mais pudor em se apresentar a igrejas, a fé, e Deus numa linguagem puramente comercial. Acho que deveriam escutar o que o próprio Fromm, que veio de uma tradição judaica, diz acerca disso:

“A maioria deles parece não se aperceber de que esse tipo de religião degenerará finalmente em idolatria ostensiva, a menos que eles próprios comecem por definir e depois a combater a idolatria moderna, em vez de emitir juízos sobre Deus, empregando assim um santo nome em vão - em mais de um sentido”[14]

Mas da onde surgiu isto? Quando foi, e porque foi que os lideres religiosos passaram a descuidar dos seus princípios, em nome de uma maior aceitação pelas pessoas? Voltando a Berger, veremos que ele aponta que este fenômeno tem origem na “crise de credibilidade”, causada, segundo ele, por conta do processo de secularização: “Dito de outro modo, a secularização acarretou um amplo colapso da plausibilidade das definições religiosas tradicionais da realidade”.[15]  Isso contudo, longe de significar que as religiões tenham desaparecido, ou perdido sua presença, pelo contrário, pois cada vez mais o indivíduo “(...)é assediado por uma vasta gama de tentativas de definição da realidade, religiosas ou não, que competem por sua adesão ou, pelo menos, sua atenção, embora nenhuma delas possa obrigá-lo a tanto”.[16] Portanto, novamente é preciso perceber que a pluralização, tal como a secularização, não tem apenas um lado negativo, mas comporta alguns elementos positivos.

O que há de positivo no processo de pluralização é justamente o fato que, de certo modo, ele seria o fim da animosidade entre as pessoas por questões religiosas. Só para lembrar: uma situação diferente do pluralismo seria o monopólio religioso. Pois bem, não é preciso se esforçar muito para lembrar de um tempo onde o cristianismo se portou desta forma, isto é, na Idade Média, e quais era a forma de tratamento para aqueles considerados “dissidentes”. É preciso reconhecer que no princípio, a própria estrutura que a tudo englobava, era suficiente para manter de pé o sistema, o que obviamente comporta um certo número de descontentes. Porém, quando o número dos insatisfeitos começou a aumentar, o monopólio religioso, representado tanto pela hierarquia eclesiástica, como pelo império, passou a perseguir e eliminar implacavelmente seus opositores.
Como sabemos, essa perseguição não foi o suficiente para manter a velha situação, pois A Reforma Protestante veio, e pôs fim a mais de mil anos de hegemonia católica. Entretanto, é preciso lembrar que a transição do monopólio para o pluralismo não foi rápida, nem simples. Pois na verdade, os novos grupos cristãos, trataram de fundar seus próprios monopólios dentro de seus territórios, o que acabou resultando nas Guerras de Religião, que varreram a Europa, manchando-a com o sangue de protestantes e católicos. É claro que depois de tantas mortes, a situação dos monopólios religiosos estava cada vez mais enfraquecida, o que gerou a uma crescente tolerância a grupos religiosos divergentes, quer entre católicos, quer entre protestantes. É bom lembrar inclusive o papel destacado daqueles que seriam os pioneiros do movimento batista, que lutaram, entre outras coisas, pela liberdade religiosa e pela separação entre igreja e estado. Ora estes são justamente dois lados de uma mesma moeda, pois, de um lado “(...) o Estado não serve mais como uma instância coercitiva no sentido da instituição religiosa dominante”,[17] por isso, o indivíduo tem uma maior liberdade pra tomar a decisão sobre sua preferência religiosa. É justamente destes dois fatores que dependem o desenvolvimento do pluralismo que hoje conhecemos, que portanto, por princípio, não pode ser considerado totalmente negativo.

O que há de mal no pluralismo? Como já disse antes, o pluralismo é o processo que resulta das escolhas feitas pelas pessoas, que se baseia, e afirma a liberdade humana; no que, aliás, é bem dentro no espírito do item sobre este tema do documento “Princípios Batistas”:

“Os batistas consideram como inalienável a liberdade de consciência, a plena liberdade de religião de todas as pessoas. O homem é livre para aceitar ou rejeitar a religião; escolher ou mudar sua crença; propagar e ensinar a verdade como a entenda, sempre respeitando os direitos e convicções alheias; cultuar a Deus tanto a sós quanto publicamente; convidar outras pessoas a participarem nos cultos e noutras atividades de sua religião; possuir propriedade e quaisquer outros bens necessários à propagação de sua fé. Tal liberdade não é privilégio para ser concedido, rejeitado ou meramente tolerado - nem pelo estado, nem por qualquer outro grupo religioso - é um direito outorgado por Deus”[18]

A crítica porém que se deva fazer, não é ao pluralismo em si, mas aos seus “efeitos colaterais”. O problema está na acomodação do discurso religioso às regras do mercado. Berger diz o seguinte a este respeito: “(...) a tradição religiosa, que antigamente podia ser imposta pela autoridade, agora tem que ser colocada no mercado. Ela tem que ser “vendida” para uma clientela que não está mais obrigada a “comprar” (...) grande parte da atividade religiosa nessa situação vem a ser dominada pela lógica da economia de mercado”.[19] Portanto é contra a mercantilização, que leva a conseqüente banalização da fé, que devemos apontar nossa crítica.

Algumas questões levantadas na análise de Erich Fromm sobre a sociedade capitalista atual são esclarecedoras. Ele define o capitalismo, e por extensão, o ser humano que vive neste sistema com as seguintes características: massificado, alienado, conformado e orientado pelo princípio da urgência do prazer.[20] Vamos nos deter um pouco mais no primeiro termo: “massificado” é o fato de que, a atual fase do capitalismo é marcada pelo gigantismo; empresas cada vez maiores, controlam pessoas aos milhões. Com isso, a iniciativa pessoal, marca do capitalismo de outros tempos, vai desaparecendo, e a única opção que resta aos trabalhadores é tentar uma vaga no concorrido mercado de trabalho, que a cada dia que passa é controlado por um número menor de empresas. Neste sistema, as pessoas não são tratadas como indivíduos, mas sim como números; quase como uma peça de uma máquina. O que importa aqui não é o potencial humano, sua criatividade e engenhosidade, mas sim os resultados numéricos, a produção que este ente sem nome apresenta no final de um tempo pré-determinado. A massificação leva portanto a uma crescente quantificação e a abstração dos processos, e das pessoas.

Os mesmos sintomas podem ser detectados em relação à vida religiosa. Nem é preciso falar sobre o fenômeno das “mega igrejas”, testemunhos vivos da tendência à massificação entre nós. Mais é outra característica que mais me chama a atenção: a ênfase no resultado. Vale destacar aqui as palavras de Israel B. Azevedo, afirmando que a teologia batista produzida no Brasil “(...) é utilitária, entendendo ser sua tarefa fornecer elementos para que as igrejas se multipliquem numericamente; assim, só tem valor à produção do espírito (...) que contribua para a ampliação, numa espécie de elogio ao número, visto como parâmetro judicante de qualquer prática (...)”.[21]

Eis portanto o desafio e a oportunidade da educação cristã: promover um ensino que devolva ao indivíduo a condição de pessoa, e por isso mesmo, que esteja fundado numa observação crítica da realidade. Numa palavra, o ensino cristão deve ter como meta a formação de sujeitos autônomos, e não meras peças para a engrenagem eclesiástica. Voltemos ao texto dos “Princípios Batistas”, em seu item sobre “Centralidade do indivíduo” para ver se podemos embasar tal ênfase:

“Os batistas, historicamente, têm exaltado o valor do indivíduo, dando-lhe um lugar central no trabalho das igrejas e da denominação. Essa distinção, entretanto, está em perigo nestes dias de automatismo e pressões para o conformismo. Alertados para esses perigos, dentro das próprias fileiras, tanto quanto no mundo, os batistas devem preservar a integridade do indivíduo. O alto valor do indivíduo deve refletir-se nos serviços de culto, no trabalho evangelístico, nas obras missionárias, no ensino e treinamento da mordomia, em todo o programa de educação cristã. Os programas são justificados pelo que fazem pelos indivíduos por eles influenciados. Isso significa, entre outras coisas, que o indivíduo nunca deve ser usado como um meio, nunca deve ser manobrado, nem tratado como mera estatística (...)”.[22]

Tendo demonstrado, creio eu, que a ênfase na autonomia além de ser uma exigência frente aos “efeitos colaterais” do processo de pluralização, está presente mesmo em nossas convicções mais caras, a pergunta que fica é sobre o como promover uma educação cristã que seja promotora da autonomia. Sem querer fazer aqui uma exposição completa do texto do grande educador brasileiro Paulo Freire em sua “Pedagogia da autonomia”, vamos levantar pelo menos algumas propostas que nos insinuem o caminho que nos leve a uma educação “autonomizadora”. No capítulo que trata sobre o tema “Não há docência sem discência”[23], Freire fala a respeito da educação como um processo interativo entre educando-educador, pois “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”.[24] Ora, isso exige por parte daquele que educa uma profunda humildade e respeito pelo saber do seu aluno; quer dizer, o ensino não um processo onde se encontram de uma lado, o saber, e do outro, o não-saber. Como disse o pastor e escritor Carlos P. Novaes, no texto de abertura do Congresso de Educação Religiosa de 2001, promovido pela Coordenadoria de Educação Religiosa da CBF “No que se refere à vida cristã (...) dispensa-se à obtenção de um diploma ou de títulos acadêmicos para conversar sobre a fé e as coisas da fé. (...) a maioria (...) encontra-se na mesma condição de Riobaldo:[25] não sabem tanto, mas desconfiam de muito”. Trata-se portanto do encontro entre dois saberes que, não sendo antagônicos, apenas encontram-se em níveis diferentes: o saber do aluno, que se baseia numa curiosidade um tanto ingênua, que é a característica do saber do senso comum, e do outro, o professor, que também movido pela curiosidade, que por conta de ser orientada pelo rigor da pesquisa, pode ser chamada, segundo  Freire de “curiosidade epistemológica”.[26]

Fica claro então, que a promoção da autonomia, além do respeito pelo saber do aluno, exige do professor profunda dedicação à pesquisa e rigor no método; rigor este que possibilite ao educado ter acesso às “regras do jogo”, isto é, que ele aprenda não apenas uma série de informações, mas muito mais, a partir de quais regras o conhecimento é produzido. Para isso, é necessário que se desenvolva por parte do educador “(...) o mérito da paz com que viva a certeza de que faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos mas também ensinar a pensar certo”.[27] Afinal, não disse Jesus que “Não é o discípulo mais do que o seu mestre; mas todo o que for bem instruído será como o seu mestre” (Lc. 6:40). Notem bem: embora a ênfase aqui pareça negativa, o sentido do texto deve ser buscado justamente na defesa de Cristo que há um elo que une discípulo e Mestre; sendo assim, “Se a mim me perseguiram, também vos perseguirão a vós; se guardaram a minha palavra, guardarão também a vossa” (Jo. 15:20). Acreditar no ensino que valorize o discipulado de iguais, promovendo a autonomia do educando, é de fato o desafio e a oportunidade da educação cristã, frente à realidade da pluralização e seus efeitos colaterais.

Vamos de novo ao que eu não quis dizer: eu não quis dizer que o “resultado” não é importante, ou propondo que não se tenha critérios para avaliar aquilo que se é feito; minha defesa foi apenas no sentido de demonstrar que elevar o resultado numérico à condição de juiz supremo, é um erro que prejudica fatalmente a produção de um ensino de qualidade, sem dizer que poderá servir de motivação para demolir àqueles princípios que deveríamos considerar inegociáveis. Também não disse que a crença no valor do indivíduo deva nos levar a aceitar o individualismo egoísta, baseado no lema “cada um por si...”. Mas como isso é o tema do próximo momento, paro por aqui minha argumentação. 

3. Privatização, o reino do “eu sozinho”.

“(O ser humano) estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser”. É assim que o filósofo Jean Paul Sartre define a condição humana. Sendo assim, sequer cabe aqui, a clássica desculpa “eu não pedi para nascer”, pois

“Sou abandonado no mundo (...) no sentido de que me deparo subitamente sozinho e sem ajuda, comprometido em um mundo pelo qual sou inteiramente responsável, sem poder, por mais que tente, livrar-me um instante sequer desta responsabilidade, pois sou responsável até mesmo pelo meu próprio desejo de livrar-me das responsabilidades” [28]

Nessa interessante defesa sobre o relacionamento entre liberdade e responsabilidade dentro do quadro de uma filosofia existencialista, não é possível deixar notar as marcas da visão do homem que tem marcado a história do pensamento desde o Renascimento, como nos diz o teólogo americano G. E. Wright:

“Um artigo ao qual nos temos apegado com espantosa tenacidade desde a Renascença é certa noção humanista do indivíduo. Com intensa sinceridade, o mundo ocidental vem-se concentrando no homem como indivíduo, no seu valor, na sua excelência, nos seus direitos e na sua liberdade, disso resultando que o sentido da significação e propósito da comunidade se evaporou”.[29]

Mas quais são os reflexos deste acento no indivíduo para a religião? Apenas para nos situarmos em relação à teoria que tem servido de base para esta reflexão, é preciso dizer que para Berger, a privatização é outro corolário do processo de pluralização, pois como o indivíduo tem diante de si, uma série de alternativas, sem que haja um poder oficial que o coaja a escolher esta ou aquela opção, a sua religiosidade, e por que não incluir tantas outras coisas, trata-se de um assunto da esfera privada, sobre o qual ninguém deva interferir.

 Mas afinal de contas, qual o problema nisso? Já não foi afirmado aqui mesmo a necessidade de se sublinhar a competência do indivíduo? A pergunta é se não há um exagero, que tem levado ao extremismo perigoso; numa palavra, da individualidade, para o individualismo. A diferença entre os dois vocábulos foi apontada por um sociólogo nestes termos:

“(...) a individualidade não é uma rejeição da sociedade e de suas exigências mas é, em grande parte, produto da vida social. Não se deve confundir com a filosofia do “individualismo”, que vê a sociedade e a pessoa como intrinsecamente hostis e, portanto, ignora a interdependência inevitável - e proveitosa - que as une”[30]

Mais contundente ainda, é o restante da crítica do já citado G. E. Wright, quando afirma que a importância que tem sido dada a “individualidade”, “(...) aconteceu tão rapidamente a ponto de determinar um vácuo que foi e continua sendo preenchido por meios extremos e radicais”.[31] Esta mudança, patrocinada pela idéias e práticas da chamada “democracia liberal”, acabaram por quase esvaziar o sentido de comunidade, atomizado a sociedade na mera soma de seus indivíduos. Com isso, segundo o autor, “Um vazio caótico passou então a existir”.[32] E as igrejas não ficaram à margem deste processo, pois também nela a ênfase exacerbada no indivíduo tem se sentido:

“(...) não importa quão elevada seja a doutrina da Igreja a que uma seita venha a aderir, na prática suas congregações são simples reunião de indivíduos que pouco conhecem da comunidade cristã no sentido bíblico e pouco esperam dela. (...) A adoração da igreja foi pesadamente influenciada pelo pietismo individualista, bastante preocupado, não com o organismo social, mas com a necessidade de paz, descanso e de alegria do indivíduo em meio às tormentas e às mares da vida”.[33]

Não é de estranhar, que as questões sociais, tão presentes no texto bíblico, tenha virtualmente desaparecido do discurso cristão atual, permitindo que o indivíduo possa “perfeitamente” adotar códigos de conduta diferentes na esfera privada e pública, “Por exemplo, um homem de negócios ou um político podem aderir fielmente às normas da vida familiar legitimadas pela religião, ao mesmo tempo em que conduzem suas atividades na esfera pública sem qualquer referência a valores religiosos de qualquer tipo”. [34] Ora, entre as várias conseqüências deste comportamento esquizofrênico, podemos listar “O sectarismo das igrejas e suas diferenciações raciais e nacionais são expressões adicionais do individualismo que falsifica a natureza da sociedade cristã e fornece escusas para o individualismo do mundo”.[35]

O que tem a educação cristã a dizer sobre isso? De que lado ela deve ficar? Enfatizar meramente a individualidade, esquecendo-se que os atos dos indivíduos tem repercussões sociais? E que enquanto uns poucos indivíduos, por diversas circunstâncias, acumulam grandes quantidades de recursos, outros necessariamente irão padecer a falta, a ponto de lhe faltar o essencial à sobrevivência? Será a educação cristã insensível à barbárie que se instala na sociedade, fomentada justamente pela profunda desigualdade na distribuição de renda? Só para não ficar na mera teoria, é bom situar num quadro real, e bem conhecido de todos nós: no Brasil 10% da população (os mais ricos) ficam com 50% da renda, enquanto a metade da população detém apenas 10% da renda nacional. Para ilustrar isso, é só imaginar que a gente convide para 100 pessoas para uma festa - na hora de dividir o bolo, que foi dividido em 100 fatias, 50 delas serão divididas entre 10 convidados, enquanto 50 pessoas terão que brigar para dividir dez fatias...  O resultado dessa má distribuição, é que o número de pobres no Brasil chega a 56 milhões de pessoas, ou seja, 33% da população. E ainda, 14% da população está na condição de indigência, vivendo na miséria Esses dados constam do último levantamento publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA); mas as Organizações das Nações Unidas (ONU)  tem outros dados igualmente tristes; segundo estudo recente, a cada três brasileiros, um é desnutrido, e todos os dias morrem de desnutrição 280 crianças brasileiras com menos de um ano de idade. São 8,4 mil mortes todos os meses.

Uma solução para o impasse artificial entre responsabilidade individual x responsabilidade social, engendrado para atender aos interesses das instituições econômicas e políticas modernas[36], isto é, inventada pelo meio de produção capitalista, é o comprometimento do ensino cristão com os valores bíblicos, que falam sim do respeito à individualidade, mais ao mesmo tempo, fala da responsabilidade social. Vejamos alguns exemplos disso:

a) Deus é Justo - Mas do que fazer aqui uma afirmação sobre uma qualidade divina, quero chamar a atenção para o profundo compromisso que as Escrituras testemunham de Deus com a justiça. E isso não é nada difícil, tantos são os textos que nos demonstram essa relação: Deus ama a justiça (Sl. 11:7 e 37:8;  Is. 61:8) e executa atos em favor da justiça (Gên. 28:25; Deut. 10:17,18);  odeia a corrupção, a opressão e a discriminação social (Am. 5:12 e 8:4-6; Ez. 16:49; Tg. 2:1-9);  aborrece-se com uma religiosidade baseada numa adoração vazia (Is. 1:11-16; Am. 5:21-24; Mq. 3:9-12), e requer, ao invés disso, verdadeiro compromisso com a justiça social (Is. 1:17; Os. 6:6; Mt. 12:6-8; Tg. 1:26,27). Fico pensando como isso traz alguns desafios a nossa própria realidade. Afinal, há entre nós discursos teológicos que legitimam a  opressão econômica (vide a “Teologia da Prosperidade”), e ainda uma forte tendência para centralizar a vida religiosa ao culto público, resumindo a  “adoração” a meros gestos, palavras e emoções. Nesses termos, aplicam-se as palavras de Tillich, “As igrejas não podem ser levadas a sério quando tratam apenas de sentimentos subjetivos (...) quando a teologia (...) permite que isto aconteça, está prestando um desserviço”.
           
b) Cidadãos do Reino - A tarefa de definir o que seja o “Reino de Deus”, é extensa demais para que possamos fazê-la aqui. Apenas para situá-la em termos de importância, há quem defenda que seja nesta doutrina que a unidade entre o Antigo e o Novo Testamento fica mais clara: no AT,  ela nos fala acerca do governo de Deus sobre Israel e além - isto é, do interesse de Deus por todos os povos. Fala de Deus como Criador, Juiz e Salvador de todas as nações (Sl. 145:13; Is. 54:22,23 e 66:18-23).  A mensagem acerca do Reino era também central no ensino de Jesus: ele anuncia o Reino como um bem precioso, de tal forma que a pessoa deveria estar pronta a abrir mão de tudo em troca da participação nele (Mt. 13:44-45); além disso, declarou a iminência do Reino (Mc. 1:14-15), e por isso mesmo a urgência do arrependimento, obediência e dependência Divina para participação na Bem-aventurança do Reino de Deus. Mas, onde está a relação entre a doutrina acerca do Reino e a necessidade da justiça? Está no caráter do Reino de Deus - pois o conteúdo deste, é fortemente ético. Ele fala de que é impossível servir a Deus sendo avarento e ganancioso (Mt. 6:24; Mc. 4:19; Lc. 18:24); e como o texto que citamos acima nos fala, o Reino pertence àqueles que tem “fome e sede de justiça” (Mt. 5:6). Além disso, a doutrina do Reino de Deus é importante para quem queira ajudar a saciar a necessidade de justiça que há no mundo, pois nos fala de uma obediência radical - mesmo contra todas as impossibilidades, o cristão é chamado a viver e a lutar por justiça - e isso apesar das  contradições em que formos envolvidos, e mesmo as nossas falhas pessoais. E não nos faltam exemplos de cristãos que viveram e até morreram dessa forma. Como são muitos, cito apenas Dietrich Bonhoeffer, pastor luterano alemão, que ficou preso por 23 meses, e foi morto por ordem direta de Hitler por se opor à tirania deste. Mesmo na prisão, Bonhoeffer soube afirmar: “Deus não cumpre todos os nossos desejos, mas todas as suas promessas, isto é, ele permanece sendo o Senhor da terra, mantém a sua igreja, nos presenteia uma fé sempre renovada, nunca nos impões uma carga maior do que podemos carregar (...)”. Que possamos também ser fiéis ao Reino em nosso próprio tempo - tempo que é marcado pela profunda necessidade de justiça.




[1] Freud, Sigmund,  citado por R. Alves em O enigma da religião. 2ª Ed. Petrópolis, Vozes, 1979. p. 21
[2] Weber, Max: A ética protestante e o espírito do capitalismo. 5ª Ed. São Paulo, Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais, 1987 p. 131
[3] Em nota de rodapé, a respeito desta citação, o editor irá comentar que: “Esta passagem da carta é o primeiro comprovante do estudo intensivo que Bonhoeffer fez de Weltanshauung und Analyse dês Mesnchen seit Renaissance und Reformation, de Wilhelm Dilthey” (Bonhoeffer, Dietrich: Resistência e submissão. Ed. Sinodal/EST, 2003. pp. 434-435). De fato, outros autores, como Rosino Gibellini (“A teologia do Séc. XX”), irão confirmar que Bonhoeffer se baseia na descrição do processo histórico feita por Dilthey, aceitando sua tese de que caminhamos para um mundo “tornado adulto”.  .
[4] Berger, Peter O Dossel Sagrado 3ª Ed. São Paulo, Paulus, 1985. pp. 117-118.
[5] Ibid. p. 119.
[6] Ibid. p. 120.
[7] Engels F. e Marx K.: Manifesto do Partido Comunista. Ed. Martin Claret, 2002. p. 47-48.
[8] Berger, Peter O Dossel Sagrado 3ª Ed. São Paulo, Paulus, 1985. p. 124.
[9] Bonhoeffer, Dietrich: Resistência e submissão. Ed. Sinodal/EST, 2003. p. 489
[10] Ibid. p. 489
[11] Ibid. p. 490
[12] Alves, Rubem: O enigma da religião. 2ª Ed. Petrópolis, Vozes, 1979. p. 22
[13] Fromm, Erich Psicanálise da sociedade contemporânea.  Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1983. pp.175,176.
[14] Ibid., p. 177
[15] Berger, Peter O Dossel Sagrado 3ª Ed. São Paulo, Paulus, 1985. p. 139.
[16] Ibid., p.140
[17] Berger, P.  Op. cit., p.142
[18] “Princípios Batistas”, em: Impacto, realidade batista Niterói, CBF, 2001.  p. 12
[19] Berger, P. Op. Cit. P. 149
[20] Fromm, E. Op. cit. pp. 108-166.
[21] Azevedo, I. B. A Celebração do Indivíduo - a formação do pensamento batista brasileiro.  São Paulo, Unimep, 1996. p. 224.
[22] “Princípios Batistas”, em: Impacto, realidade batista Niterói, CBF, 2001.  p. 12
[23] Freire, Paulo Pedagogia da autonomia 28ª Ed. São Paulo, Paz e Terra, 1996. pp. 21-45
[24] Ibid., p. 23
[25]  Personagem de Guimarães Rosa na obra  Grande sertão: Veredas, citado por Novaes, quando diz “Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa”
[26] Freire, Paulo Op. Cit. p.29
[27] Ibid., pp.26-27
[28] Sartre, Jean Paul – O Ser e o nada, p.  680
[29] Wright, G. E. Doutrina bíblica do homem na sociedade. São Paulo, Aste, 1966. p 32
[30] Chinoy, Ely Sociedade, uma introdução à sociologia. 5ª Ed. São Paulo, Cultrix. pp. 638-639
[31] Wright, G. E. Op. cit. p.33
[32] Ibid., p.33
[33] Ibid., pp. 33-34
[34] Berger, Peter Op. cit. p. 144
[35] Wright, G. E. Op. cit. p. 34
[36] Berger, Peter op. cit. p.145

sexta-feira, 25 de março de 2011

“Diante da dor alheia, respeito!”



“E, levantando de longe os seus olhos, não o conheceram; e levantaram a sua voz e choraram, e rasgaram cada um o seu manto, e sobre as suas cabeças lançaram pó ao ar.  E assentaram-se  com ele na terra, sete dias e sete noites; e nenhum lhe dizia palavra alguma, porque viam que a dor era muito grande. (Jó 2:12-13)

          Certamente cada um de nós derramou ao menos uma lágrima diante das imagens que temos visto da catástrofe que se abateu sobre o Japão. Mas não só lá: aqui mesmo no Brasil, diante das chuvas que tem caído forte em diversas partes do país, cenas de dor, morte, desespero chegam até nós numa repetição que chega a nos anestesiar tamanha a velocidade. Diante de perdas tão terríveis, o mínimo que se exige de nós é um profundo respeito pela dor daqueles que perderam tudo, e mais do que isso: perderem todos. Para minha vergonha, alguns “colegas” tem sido aqueles que menor sensibilidade tem demonstrado, ou para dizer de forma clara, têm sido insensíveis, cruéis e desonestos, tanto do ponto de vista teológico como moral, pois têm se aproveitado dessas tragédias para reforçarem sua visão distorcida da realidade, ou simplesmente para aumentar a arrecadação em seus cultos.
     É claro que todo evento adverso, levanta para nós que cremos em Deus uma série de perguntas, a mais comum de todas é “por que Deus permitiu que isso acontecesse?”. É uma pergunta honesta que pode nos levar a uma série de reflexões. Pode-se argumentar na direção de que Deus permite que certas coisas sucedam para provar a nossa fé; o problema é que os eventos tais como temos assistido causam uma quantidade de dor e morte tão devastadora que colocá-las como “testes” para a nossa fé tornaria Deus numa espécie de jogador cruel com nossos destinos. Outra reflexão nos leva na direção da compreensão que esses fenômenos têm haver como o modo como nosso mundo existe; nenhum deles é um evento “sobrenatural”; além disso, poderia se acrescentar que muitos destes eventos assumem as proporções terríveis que temos assistido por conta da interferência humana: por que temos ocupado de forma inadequada os espaços, como diz a canção, criando “palácios e barracos”; temos devastado a natureza e com isso precipitado uma série de eventos que depois nos apavoram; criamos formas de energia altamente destrutivas, como no caso da energia nuclear. Mas sei que isso obviamente não é uma resposta definitiva a pergunta. Creio mesmo que não haja tal resposta.
     Talvez, a única resposta seja aquela que encontramos no texto de Jó que lemos acima: uma profunda comoção diante da dor alheia, e um silêncio mais do que respeitoso: solidário. Para aqueles que leram o resto do livro, é justamente quando os amigos de Jó resolvem abrir a boca é que começam a dizer as mais rematadas besteiras, como dizer que Jó estava sofrendo por que Deus estava castigando os seus pecados. Pelo que tenho ouvido, parece que muitos pastores de nossos dias não fizeram isto, pois continuam a dizer as mesmas asneiras que os amigos de Jó.