domingo, 4 de abril de 2010

A vida em face da morte

 “Nu saí do ventre de minha mãe e nu tornarei para lá; o Senhor o deu, 
e o Senhor o tomou: bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1:20)
“Vida minha vida... olha o que é que eu fiz...” (Chico Buarque)


 “Viver é muito perigoso”; nisso concordam o filósofo Nietzsche e o personagem Riobaldo, da obra “Grande Sertão: veredas” de Guimarães Rosa. Exagerando um pouco, diria que todos nós concordamos tacitamente com eles, ainda que por motivos diferentes. Seja por que ficamos impressionados com as más notícias do telejornal; por teremos presenciado uma situação de violência; ou, ainda por ter vivido uma situação-limite, como um acidente ou enfermidade grave. Enfim... Há adágios suficientes que dão conta dessa fragilidade que é estar vivo: “Quem é nascido já é velho o suficiente para morrer”; “A única coisa certa na vida é a morte”.  Viver é mesmo a difícil busca de se equilibrar sobre a corda bamba...
Se é assim, o que fazer? 
É possível tentar fingir que não há perigo; inventar um mundo onde coisas ruins não acontecem – pelo menos não conosco -, e onde estamos livres de todos os perigos. Uma pausa: lembrei-me das narrativas sobre Sidarta Gautama, cuja busca espiritual começa justamente diante da perplexidade que experimenta diante da velhice da doença e da morte. Voltando ao assunto: fingir não ver o que é a realidade sempre acaba em decepção, pois mais hora menos hora, ela, a realidade nos cobra sua fatura.  Aquilo que mais tememos, acaba por nos alcançar (Jó 3:25).
Um segundo modo de lidar com o “perigo” da vida, é afundar-se num pessimismo cego. Passar a enxergar só as desgraças, revolver-se nelas. Afinal, se o fim de todos é a morte, por que ter esperança? Essa atitude peca por não perceber um aspecto óbvio – antes da morte, há algo grandioso, se não em tempo, mas em possibilidades, que é a vida. Não aproveitar tudo o que pudermos disso, é perder a grande oportunidade que temos - ainda que a vida seja na “fé” de alguns, um breve intervalo entre dois "nadas" ou talvez, principalmente aí - e que se renova a cada vez que o velho sol aparece no horizonte.
A terceira opção que encontro para lidar com os limites da vida, é ter coragem, muita coragem. É repetir tal qual vemos na narrativa de Jó: “O Senhor deu, o senhor o tomou: bendito seja o nome do Senhor”. Que fique claro: a beleza deste texto pra mim não está numa suposta inexorabilidade dos desígnios divinos. Não me anima a idéia de um Jó fatalista – é bom lembrar que ele passa boa parte de seu pequeno livro reclamando um bocado. O que acho interessante imaginar a partir deste texto, é um Jó que não lamenta as tragédias como se estivesse sendo castigado por Deus; ou ainda que aquilo que lhe aconteceu não deveria de modo nenhum tê-lo atingido. Não. Ele reconhece a inteireza da vida, com o que há de belo e de trágico. Nada lhe é estranho; tudo está contido na experiência de viver, incluindo a morte, como ilustra o que a tradição diz sobre São Francisco em seus momentos finais “Bem-vinda sejas, irmã minha, a morte!”.
É claro que nem sempre se tem tanta coragem assim. Lembrando do nosso Jó, ele fraqueja em diversos momentos de suas experiências trágicas, o que não apaga a beleza de sua decisão naquele momento difícil. Nós também, ainda que na inconstância de nossas emoções, podemos viver de tal maneira, com coragem e fé, amando a vida, sem negar a morte. Pois, como disse Guimarães Rosa, três dias antes sua morte: “A gente morre é pra provar que viveu (...) A gente não morre. Fica é encantado”.