Fui convidado e participei na
semana passada (13/06/2017) em um debate na TV Aratu sobre o sacrifício de
animais para fins religiosos (apenas uma nota talvez desnecessária: apesar de
ser justamente na mesma semana quando um texto-spam sobre o tema tomou conta
das redes sociais, o debate data de dois dias antes, e portanto, aparentemente
não guarda relação direta com o mesmo).
Tentei ali sobretudo compreender
melhor o tema, sem muito sucesso, devido à falta de disposição de alguns
convidados em tentar aprofundar o tema e também da própria estrutura do
programa. Fiquei particularmente incomodado com as imagens que serviam de fundo
para o debate, e que ao meu ver, conduziram os telespectadores a um olhar
prejudicial. Pois ao expor porcos em chiqueiros não devidamente higienizados, e
outros animais em situação degradante (juntando com uma trilha incidental que
parecia querer induzir o medo), a direção do programa não ajudou a quem
assistia a focar nos argumentos que poderiam ser apresentados pelos convidados.
Uma nota pessoal: fui convidado
por telefone, e por isso não cheguei a anotar o endereço. Para meu infortúnio,
o GPS me levou para um outro endereço da TV Aratu em Brotas, o que me fez ao
invés de chegar 15 minutos antes como gostaria, a chegar 10 minutos depois do
início do programa.
Para começar, e foi o que disse
insistentemente, me causou estranhamento a falta de representação de lideranças
das religiões de Matriz Africana: éramos dois cristãos, dois ambientalistas e
um representante do Islamismo. A direção do programa justificou dizendo que o
convite havia sido feito, mas que não pode ser atendido pois a religiosa
convidada estava em obrigação (quase ao final do programa chegou um
representante, mas que mal teve tempo de esboçar suas ideias, mas certamente
valeu por sua principal reivindicação: respeito). Mas novamente, não fez e não
faz sentido discutir esse tema sem a presença, quiçá em maioria, de
representações das religiões de Matriz Africana. Falo isso pois, inclusive no
programa em questão, há a tentativa de se dizer que “não se trata de perseguir
as religiões de Matriz Africana” ou “não tenho nada contra”, e outros
subterfúgios que tentam negar o que é óbvio: a tentativa de proibir os
“sacrifícios sagrados” atinge, criminaliza e busca inviabilizar as religiões e
cultos de Matriz Africana. Se as(os) adeptas(os), e mesmo negras e negros que
não são de Candomblé, Umbanda, etc., entenderem que o que está por trás desse
tipo de discussão/iniciativa é o Racismo Estrutural, que se apresenta em suas
múltiplas formas, e que se esconde até mesmo em iniciativas “bondosas” (a
defesa dos animais) certamente não tenho nenhuma autoridade para dizer que não
é o caso.
Reiterando que não sou eu
enquanto cristão que tenho que deitar falação sobre o tema do sacrifício de
animais para fins religiosos, dividi meu parcos argumentos em duas direções, a
partir de minha pertença religiosa, política e social.
Primeiro, acho no mínimo
contraditória o argumento baseado “na Bíblia” que busca demonizar a prática dos
sacrifícios – com se ao matar um animal algum tipo de “força maléfica” fosse
necessariamente invocada (ainda que seja caricatural o argumento, condensa penso
eu, o espírito das ideias). O fato é que não faltam relatos de sacrifícios na
história da trajetória de fé que foi legada ao povo da Bíblia. Como é dito a
exaustão em sermões e textos, cristãs e cristãos ao redor do mundo se entendem
como seguidores do Deus de “Abraão, Isaque e Jacó” (e Moisés, Sara, Davi,
Débora, Maria e Jesus). E é público e notório que a prática de sacrifício de
animais fazia parte das tradições religiosas do povo de Israel. Portanto,
nossos “Pais (e mães) na fé”, praticavam tais sacrifícios. Sobre o argumento de
que isso foi “até Jesus”, bem, essa é uma discussão teológica muito específica,
que não cabe ser desenvolvida aqui. Mas só uma pista: é muito certo de que a
comunidade de Jerusalém (tida muitas vezes de forma idealizada em círculos
cristãos na forma de “Igreja Primitiva”) seguia na prática regular de
sacrifícios. Se posteriormente as comunidades não judaicas aboliram a prática é
outra história. O que basta aqui é compreender que cristãs(os) acusarem as
religiões de Matriz Africana de “diabólicas” ou de “perversas” por causa dos
sacrifícios de animais é um contrassenso histórico.
O segundo argumento diz respeito
a Laicidade do Estado. Sem querer delongar ainda mais: Estado Laico significa a
(verdadeira) separação entre Religião e Estado; significa que o Estado não deve
promover nem prejudicar quaisquer convicção religiosa bem como a
não-religiosidade. Infelizmente sabemos que não é assim: desde as invasões
portuguesas até os dias de hoje, as igrejas cristãs das mais variadas
denominações tem tido uma série de privilégios por parte do Estado. Esses
privilégios se materializam não apenas no apoio direto a festas, manutenção de
símbolos religiosos e cultos cristãos em espaços públicos, restauro de patrimônio,
etc., mas também de formas “invisíveis”: na imposição de valores cristãos ao
conjunto da sociedade através de leis, educação religiosa de cunho cristão,
etc. Pois, mesmo reconhecendo a precariedade de nosso “Estado Laico”, ou
talvez, principalmente por isso, é fundamental enfatizar que o sacrifício de
animais pelas religiões de Matriz Africana é prática assegurada, posto que se
trata da consciência e convicção religiosa sobre a qual o Estado não deve de
forma alguma interferir. Claro que há limites: a Lei. E bem, ainda que pese o
argumento de ambientalistas, no Brasil não é proibido o abate de animais. Somos
uma população que consome regularmente em sua dieta os mais variados animais, e
é a nossa dieta a responsável por 99,99% do abate dos mesmos diariamente. E
veja, não se trata de menosprezar a luta de grupos ambientalista, vegetarianos,
veganos, etc., pelo não maltrato de animais, e mesmo a abolição de seu consumo.
O erro para mim, está em centrar essa discussão no abate para fins religiosos.
O erro está em supor que os “sacrifícios sagrados” são práticas particularmente
perversas e de crueldade contra os animais; o erro está em apontar para ações e
leis que, conscientemente ou não, aviltam, criminalizam, àquelas(es) que
historicamente são prejudicadas(os): negras e negros; afrodescendentes, que tem
nas religiões de Matriz Africana o espaço para preservação de sua cultura, de
sua ancestralidade. A luta contra o abate de animais e justa? Pode ser. Que o
centro e o alvo desta luta seja a sociedade de consumo, grande culpada pelo
abate de animais, e não àquelas(es) que são historicamente prejudicados.
Enfim, peço desculpas as(os)
religiosas(os) de Matriz Africana se usei termos de forma inadequada (ou
demasiadamente repetida), ou se citei qualquer questão que não seja central, ou
de forma equivocada. Como disse de início, minha opinião é “mera opinião”, e
não consiste na fala que deve ser central nessa discussão que é a de vocês.
Aos demais, creio que devemos
investir nosso tempo em fugir da polêmica pela polêmica. Compreender mais do
que gritar chavões deveria ser a base de nossas ações, em quaisquer área de
nossa vida.
Abraços,
Joel Zeferino.
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