segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Deus me livre de um "novo normal"

 Uma nota de atualização: o texto que se segue foi escrito no final de julho. De lá pra cá muita coisa mudou: pra pior, obviamente. Ao invés de 80 mil mortos, temos mais de 130 mil. Não temos mais filas apenas na porta do Shopping: ônibus e trens lotados; bares entupidos; e claro, praias apinhadas de gente, por que se é pra morrer, melhor morrer e matar - afinal adquirir o vírus não é só uma brincadeira de “roleta russa” com a própria cabeça; está mais para uma metralhadora giratória ligada no... dane-se... - bronzeado.  

Enfim, o texto em retrospectiva, acentua ainda mais o quanto estamos perdendo em humanidade, em vários sentidos. Talvez inclusive possa ser lido como uma profecia realizada: entramos de cabeça no “novo normal”, e como sempre, os sistemas de opressão conseguem parte do seu sucesso por convencerem as pessoas oprimidas a se tornarem suas “aliadas”.  

Me pergunto seriamente pra que ainda publicar um texto que parte do reconhecimento de que “eles venceram e o sinal está fechado pra nós...” (que não somos tão jovens assim). Teimosia provavelmente. E pela certeza de que não importa de quanto se esteja perdendo, se é possível ou não virar o placar: se a gente está no jogo, bora tentar fazer um gol e ver no que dá depois...  

Enfim, para quem quiser ler um texto datado, não vá dizer que eu não avisei!  

Foi essa semana que o Brasil chegou à terrível marca de mais de 80 mil mortes por conta da Pandemia do COVID-19, e, para os que se agarram a qualquer idiotice para tentar defender esse Governo de morte, dizendo que esse número grotesco de mortes "é normal", alguns dados: em 2017 (segundo o Ministério da Saúde não a "Globo comunista" viu? -   http://svs.aids.gov.br/dantps/centrais-de-conteudos/paineis-de-monitoramento/mortalidade/gbd-brasil/principais-causas/ ) a maior causa de mortes no ano inteiro foi por AVC, em cerca de 80 mil. No mesmo ano, as "infecções das vias aéreas", na qual o COVID-19 se enquadra, ceifou cerca de 40 mil vidas.  

E antes que alguém pergunte o porquê de relacionar o "e eu com isso / eu não sou coveiro" com esse número de mortes... Bem, se você não entendeu ainda, não tenho condições nem a pretensão de lhe explicar. Esse texto provavelmente não é pra você. Procure um meme falando mal do Lula, do PT, ou dos comunistas, etc., ou um texto de ódio em uma outra página para seguir justificando seu apoio bovino ao seu pastor-Messias.... 

Mas, desculpe, não terminei o início da primeira frase. Voltando: na semana em que o Brasil chegou à terrível marca de mais 80 mil mortes por conta do Coronavírus, a Prefeitura de Salvador resolveu liberar a abertura dos Shoppings. Um erro profundo para uma administração que, até aqui, estava agindo com um bom grau de responsabilidade, sobretudo se comparada a outras capitais brasileiras em que os governantes venderam sua população à morte por algumas moedas, já nos primeiros dias de Pandemia.  

Mas um erro não justifica outro, e o que espantou a qualquer pessoa com o mínimo de bom senso foi saber que as multidões se acumularam em frente aos Shoppings horas antes da abertura desses, em uma bela demonstração de tudo o que não se deve fazer em meio a uma Pandemia, com aglomerações que fazem a festa - para o vírus que tem como único objetivo se propagar de qualquer forma, e se pudesse, agradeceria a cada um na tenebrosa fila do "ah, já há mais de dois milhões de infectados, já morreram mais de oitenta mil, mas em mim, que me acho muito especial, não vai pegar" ou "eu não faço parte do grupo de risco, portanto, acho que se eu pegar não vou morrer e tampouco me importo se alguém morrer por causa da minha irresponsabilidade". 

E quer saber? Esse texto nem era sobre isso... Mas, tem como os dedos não se encherem de um tanto de raiva e indignação com a franca demonstração de estupidez e falta de empatia de uma parcela significativa das pessoas com as quais temos que conviver em mesmo território? 

Vou respirar um pouco... Enfim, se você chegou até aqui, eis o que eu queria ilustrar com a tal fila nos Shoppings: a ânsia pelo tal "novo normal". Cacetada... Que nojo crescente que eu tenho dessa expressão. A contragosto, tenho que utilizá-la aqui, por que este é o objetivo desse texto afinal, analisar essa expressão, mas pela recorrência com a qual me deparo com ela. Sim, a porra do "NN" (vou evitar a palavra chula e abjeta com as iniciais "NN" ok querida(o) leitor(a)?) tem sido esfregada em nossas fuças a cada momento, como um Oásis no meio do deserto, o Santo Graal, o Paraíso Perdido, etc., etc.... 

E aí, se tiver paciência, devemos pensar aqui: por que cargas d'águas iríamos querer "voltar ao normal", se o "normal" é uma bosta? 

"Normal" é uma daquelas palavras que se fingem de inocentes, "apolíticas", que evitam polarizações, e que, pelo que se soube, absteve-se, votou nulo ou em branco (em mais de um sentido) nas últimas eleições.  

Mas, creio que, depois que descobrimos que não é por que alguém se chama "João de Deus" que tenha algo de Divino, que se diga "Messias" que tenha algo que ver com o pobre de Nazaré, possamos dizer que "normal" seja uma palavra neutra. Ela é, como todas as outras, ou até em especial, carregada de histórias, intenções e intencionalidades.  

Dizemos "normal" com o sentido daquilo que é pretensamente "na maior parte dos casos". O bacana é que (sem citar dados, como farei agora) na maior parte das vezes (contém ironia) dizemos "normal" como sinônimo de "na maior parte dos casos" sem citar quaisquer estatísticas que comprovem nossa afirmação. Sem estatísticas, mas como ilustração: na narrativa proposta pela face mais pública e midiática das igrejas evangélicas no Brasil, uma família "normal" é uma família composta de marido, mulher e filhos. Nela, o homem é "o cabeça" da família, provém o seu sustento, etc. Porém, contrários a essa narrativa, dados, segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), demonstram que quase a metade dos lares brasileiros são chefiados por mulheres! Daí você faz a conta de que a maior parte das igrejas são compostas... por mulheres... E bem, já entendeuné? "Normal", enquanto "na maior parte dos casos", pode ser apenas um belo argumento cheio de intencionalidades não confessáveis. Desconfio, por exemplo, de que esse discurso tenha a intenção de manter o poder expresso pelo sacerdócio - mas não só - na mão de homens que, convenientemente, sabendo ou não da realidade dos dados, arrotam normalidade para omitir um "que se danem os fatos, quero é manter meus privilégios, custe o que custar".  


Outra performance do "normal" é 
confundi-lo com "natural", isto é, como se fosse algo inscrito na natureza das coisas. É "normal-natural" meninos vestirem azul, e mulheres rosa... É "normal-natural" que existam desigualdades, já que alguns "se esforçam" mais do que outros... Quer dizer, pegamos a merda de nossas estruturas sociais pervertidas, toda a história de uma sociedade construída a partir genocídios, racismos, misoginias, LGBTIA+Fobiaetc, e dizemos lindamente "é da natureza das coisas"! A estratégia perversa aqui é dupla: primeiro, como já foi dito, é ocultar na "natureza" aquilo que é construção social - afinal, quando olhamos para história, é possível perceber as multiplicidades de escolhas e a responsabilidade individual e social na construção das mesmas - o genocídio armênio, o holocausto judaico, o do povo negro, não são "acidentes naturais", são obras bem engendradas por personagens e conjunturas historicamente verificáveis e responsabilizáveis. A segunda estratégia perversa do normal-natural é marcar os corpos dos que não se submetem a essa confusão imbecil como "anormais", "doentes", "anti-naturais". Mas creio que isso mereça um novo parágrafo.  

Chego então à face mais sedutora e insidiosa do "normal": alvo e objetivo de realização de qualquer pessoa; estado de perfeição; "padrão", "sanidade"; "modelo"... São tantas máscaras que o "normal" veste nesse quesito que seria impossível tentar nomear cada uma delas - e aqui desvendo o objetivo de tudo que disse até agora, e que ainda vou dizer: as narrativas sobre o "NN" são - ainda que pesem as boas intenções de mudança aqui e ali - a nova máscara para o velho e podre "normal" de sempre. O perverso dessa face do "normal" é que ela imputa a sujeitos que sofrem os efeitos dessa grande mentira o papel de vítima e algoz. É a pessoa negra que, numa sociedade racista, em que é ensinada desde cedo que o "padrão normal de beleza" é branco, quem tem que lutar com essas imagens ao longo de uma vida, e, quando cede à tentação de "se encaixar" nesse abjeto padrão, sofre com alisamentos de cabelo e outras tantas mudanças física e emocionalmente dolorosas; são pessoas não-heteras que passam por processos complicadíssimos para reconhecerem seus desejos como normais (no sentido de não-doentios e naturais de verdade!), e que, mesmo quando resolvem tudo internamente e até com a família e em círculos próximos, têm que viver numa sociedade em que seus desejos são o tempo todo questionados e até mesmo comparados com práticas realmente perversas, como pedofilia ou estupro (se existe alguém estúpido o suficiente para achar que exista alguma ligação entre não-heterossexualidade e essas práticas abjetas desenho aqui: pedofilia e estupro são exemplos de violências sexuais em que a vítima dessa violência não consente com o abuso cometido contra seu corpo - seja por estar sendo coagida de forma física, financeira, moral, entre outras, no caso do estupro, ou simplesmente por não ter autonomia pessoal para isso, no caso da pedofilia. Isso em nada se equipara a relações autônomas, consentidas, não violentas, entre pessoas do mesmo sexo, trans, não-binárias, etc,).  

Sei que o parágrafo anterior tristemente poderia continuar a se multiplicar em exemplos, mas creio que já consegui me fazer entender. Sobretudo, creio que consegui expor minha desconfiança e mesmo ojeriza as narrativas sobre o "NN", que, numa outra imagem, é parecida com a mais nova dieta da moda, que coloca sua vida em risco, mas promete que, se você se encaixar nessa novo padrão, irreal e absurdo, finalmente será a pessoa mais feliz que o universo já produziu...  

Chego ao fim aqui, na esperança complexa e difícil de que alcancemos um estado de indignação suficiente para mudar realmente a estrutura das coisas, e não simplesmente criarmos novos slogans de autoajuda que não ajudam em nada - ou melhor, ajudam, sim, os sistemas de opressão a operarem do mesmo jeito de sempre, com uma máscara diferente.  

Se não conseguir tudo, ao menos que este texto seja lido como a "denúncia do normal", que não é nem nova, nem original - poetas com muito mais qualidade já a fizeram. Que seja mais um testemunho, somado a tantos outros, de quem não conseguem aceitar que passar fome seja "normal" num país que produz alimentos suficientes para que ninguém precise passar por essa tenebrosa tortura; de quem não entende como seja "normal" e sinal de "progresso" destruir o planeta para que possamos viver melhor e felizes no meio de um grande lixão... Sacou a loucura? Não? Normal... 

 

Joel Zeferino, Salvador – BA. 

25 de julho de 2020 (Atualizado em 14 de setembro de 2020)